POSTO AVANÇADO
Local: Galomaro, Guiné-Bissau (Jan/Fev. 1972)
Meu neto estou a tentar contar-te algumas recordações de quando o avô esteve na Guiné-Bissau (1) em 1971, durante a guerra colonial.
Fim da tarde, o ritual do jantar, noventa por cento das vezes constituído por Vianda e Estilhaços (arroz e pedaços de carne estufada) tinha terminado.
A maior parte dos meus camaradas do Destacamento dirigem-se para a Porta de Armas, onde já se encontram muitas jovens lavadeiras africanas das tabancas próximas.
Dá-se inicio à euforia de um baile de tentações, libertação de afectos em que também se libertavam alguns recalcamentos, pintalgando aqui e acolá um ambiente de risos, gritinhos e corridinhas fugindo de tentações, num desafio quase erótico.
Enquanto isto um pequeno grupo de homens preparam suas armas e restante equipamento necessário, para ocuparem os seu postos de vigilância e segurança, os patrulhamentos à volta do Destacamento. A saber, sentinelas no interior e no exterior, os “postos avançados”.
É neste clima que alcanço o meu primeiro grande susto nos dias das duas primeiras semanas que cheguei a Galomaro. (sector Leste da Guiné-Bissau).
Não estava destacado para nenhum serviço (o que muito poucas vezes aconteceu e ainda hoje não compreendo porque aconteceu), resolvi juntar-me a um pequeno grupo de camaradas com destino aos Postos Avançados. Esta decisão não foi motivada por qualquer tipo de valentia, mas porque pessoalmente tinha assumido, que procuraria ser conhecedor de tudo, conforme os objectivos que me levaram a aceitar o meu embarque com destino à Guiné-Bissau, mas que saíram em grande parte frustrados devido à doença, que originou a minha evacuação.
Juntamos-nos quatro homens, incluídos um Furriel mecânico e um cabo dos “velhinhos” (militares no fim da comissão militar) que ainda não tinha partido com destino a Portugal.
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Porta de armas da Compª CCS - Bat 3872 - Galomaro 1971 |
Saímos a porta de armas, atravessamos o pequeno largo de terra batida (podes ver na foto), e ainda decorria o cerimonial da alegria entre militares e jovens africanas. Dirigimos-nos ao Posto Avançado, uma vala no solo, talvez a 400-500 metros de distancia em direcção da Porta de Armas do Destacamento. Transportava-mos a G3, sendo que o Furriel (mecânico) tinha aplicada ao cano da metralhadora um Dilagrama (Granada de mão que podia ser lançada com disparo da arma).
Com uma caminhada relaxante, chegamos ao destino, saltamos para dentro do buraco, encetamos conversa amena, enquanto por vezes o olhar de cada um de nós ia ao limite da vegetação, entre pondo-se uma Bolanha (2).
Claro que o contador de histórias naquele semi-silêncio relativamente próximo das tabancas, era o Velhinho, deliciando os Piriquitos (recém chegados à Guiné) como eu, com um imaginário de histórias, dolorosas umas e melodramáticas outras, das quais ainda não tinha-mos tido experiência, provocando concerteza em nós silenciosos receios.. Tiveram os meus camaradas mais tarde a experiência vivida de histórias semelhantes.
Tinha passado uma hora ou pouco mais, e temos na semi-escuridão o desenrolar de uma cena intrigante.
Um grupo de vacas (ou de bois?) caminhavam em direcção à nossa direita, sem alguma variação de percurso, nem um pequeno desvio... sempre em fila.
Gado inteligente, para um Velhinho astuto. Percebi depois... Diante do desfile, este explica-nos em voz mais baixa do que até aqui nas suas histórias; que o comportamento dos animais, devia-se a que estavam a ser conduzidos por pessoas escondidas pelo volume do corpo dos bichos.
Só se colocava em dúvida se era população afecta, ou mesmo guerrilheiros do PAIGC (3).
Já quase a saírem do nosso raio de visão, que fazer, disparar ou não?. NÃO.
O maior e mais natural e justo desejo do Velhinho, era proteger-se nestes últimos dias da sua permanência no mato.
A expectativa dos Piriquitos recém chegados ao mato, contribuiu para aquela decisão do mais velho e mais experiente de nós naquela vala cavada no chão, e... sem rádio p/ comunicações.
Passados estes intensos minutos, a conversa voltou quase ao normal, descomprimida que estava a situação.
O assunto passou a ser características das armas, um dos tópicos foi o alcance dos Dilagramas e consequentemente a munição a utilizar para o seu disparo.
Como um tiro certeiro, o Velhinho pergunta ao Furriel mecânico, que ainda tinha o Dilagrama introduzido na ponta da G3, que tipo de munição tinha no carregador para disparar o mesmo se tivesse sido necessário.
Bala de G3!...responde o Furriel.
Naquela temperatura amena de principio de madrugada, todos devemos ter gelado.
O Velhinho, com uma calma indesmentível pede a ponta da arma ao Furriel. E sem delongas retira o Dilagrama da ponta do cano da metralhadora, tudo num silêncio indecifrável.
Retirado o engenho deu-se inicio a uma rajada de impropérios,; caralh.. fodx-se queria-nos matar a todos...? O que veio para aqui fazer ...? e continuou tra tra tra tra.... (4)
Não consegui ver a cara do Furriel de frente, mas sei que não pronunciou uma palavra em resposta.
Passado o tempo estabelecido, voltamos ao destacamento. Chegados, cada um foi para o seu abrigo, talvez cogitando... procurar comer ou beber algo e dormir um pouco sempre incomodado pelos mosquitos (5).
Eu nisto tudo ?.. Nada de especial, só pensei que a primeira situação de perigo que se me depara é com os meus camaradas passado duas semanas, e não com o inimigo. Merda para isto, o que virá a seguir ?!
Mas gostei de estar na companhia daqueles camaradas naquela noite tropical, dentro de um buraco rectangular a que dão o nome de Vala (que não nos foi necessária nem para sobreviver, nem para morrer) contando anedotas, não cumprindo as regras. E o Velhinho estava a ser-me muito útil para os meus sonhos e realidades. Não os esqueci, embora não me lembre dos seus nomes.
(1) antes da independência, era chamada Guiné-Portuguesa.
(2) zona de cultivo de arroz principalmente
(3) PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Movimento de libertação que lutava contra o colonialismo português.
(4) O Dilagrama (granada) só pode ser disparada com munição de pólvora seca sem projéctil. Se tivesse tido o impulso de disparar, a granada explodiria mesmo na ponta da G3, matando-nos a todos que estava-mos muito juntos.
(5) O meu abrigo era o que vês ao centro da fotografia, noutra oportunidade explico-te de que eram construídos.
Obs. Foto capturada da Net. Fica aqui o meu agradecimento ao autor.